Espiritismo à brasileira


O meu dia preferido da semana era o domingo, quando íamos para o Centro Espírita ser evangelizados. Por algum motivo eu adorava aquele lugar. Conhecer os nortes da vida, mostrando o certo e o errado e o porque das coisas. Pintar Deus, Jesus, Maria, presépios, planetas. Orar, cantar, fazer lembrancinhas em dias especiais. 

Na medida que íamos crescendo, tínhamos acesso ao aprofundamento da doutrina. Entendíamos a grandeza de Jesus, e a tradição que o antecedia apontando a sua vinda, mas também, como eram importantes a mediunidade, redescoberta pelo Espiritismo, e a reencarnação, pedra angular da justiça divina. 

Sentia-me muito inteligente em saber dos diferentes tipos de planetas, a gradação moral, na luta entre o bem e o mal, que os distinguia, bem como entender a diferença entre os espíritos que nos rodeavam. 

Aprendi a ler com desenvoltura à cabeceira da cama dos meus pais, no momento do Evangelho no Lar, lendo o Evangelho Segundo o Espiritismo, eu mesmo. Ficava com o orgulho ferido, de lacrimejar, em ter a pronúncia das palavras difíceis corrigidas por papai. Contudo, isso me tornou forte, e sequioso de ler cada vez melhor para lhe orgulhar. 

Na adolescência, fui desafiado por um padre no colégio a definir o Espiritismo. Enrolei-me todo, e acabei por dizer clichês que correspondiam, mais ou menos, a qualquer religião ou filosofia moral. Passei, então, a ler os livros basilares do Espiritismo, um a um. Isso já me elevava à categoria dos poucos espíritas que tinham o conhecimento da doutrina a partir dos fundamentos e não por romances acessórios, como se tornou costume no Brasil. 

Quando nós, os espíritas defensores da leitura dos princípios, estimulávamos os demais frequentadores do centro a ler aquelas obras básicas, diziam que eram muito difíceis, que os romances tinham tudo daquelas obras só que de forma palatável. Se insistíamos que não era assim, que os romances poderiam se exceder em imagens que mais deturpam do que esclarecem, éramos tidos como fundamentalistas.

Fui dando conta que aquela forma de tratar as obras básicas não era mera escolha didática, mas havia moldado o espiritismo à brasileira. Diferentemente da França, os médiuns aqui ganhavam destaque mais do que os espíritos, os espíritos, mais do que as mensagens, e as mensagens, a depender da autoridade do binômio médium-espírito, tornavam-se facilmente dogmas, revestidas de racionalidade, apenas porque estavam contidas em um livro psicografado. 

Essa doutrina ganhava corpo não com análises de mensagens confrontadas com a ciência, trabalhadas em um corpo filosófico, como queria Kardec, mas porque era costurada com mil retalhos de revelações apressadas. Tínhamos, então, um Espiritismo de Ramatises, Joanas, Emanuels, Andrés, Bezerras. E cada novo espírito famoso que aparecia trazendo nova verdade em psicografia aumentava a força da doutrina. O homem culto era aquele que conseguia fazer um passeio por todos esses e ainda tocar em Ubaldi e Roustaing. Pouco importando se Kardec orientou que não se podia fiar neste ou naquele espírito, mas na concordância o mais universal possível de vários espíritos se comunicando em diferentes partes do planeta, rejeitar nove verdades do que aceitar uma mentira, confrontar, debater, criticar. 

Alguns espíritas em lugares de coordenação pareciam ter ciência de que nem tudo deveria ser tomado como verdade, todavia o normal era ter o médium como um ser iluminado, e muitos espíritos, que se passavam por mentores, como arautos da verdade. Não importava o que se ensinasse sobre pensamento crítico nas palestras, o sentimento religioso de que éramos tomado quando estávamos de frente a uma pessoa mediunizada era aterrador. 

Por mais crítico que fosse meu pensamento, eu mesmo me vi petrificado por um sentimento de respeito sagrado perante alguns amigos que se mediunizaram diante de mim. Bastava que esse amigo fosse alguém do meu afeto, ou ainda, hierarquicamente superior a mim, algum coordenador de setor ou de grupo. Portanto, por mais que tivéssemos a teoria crítica mediúnica, aquela que pretendia tratar a mediunidade de uma vez por todas como algo natural do ser humano, como em um diálogo, acabávamos por moldar o espiritismo nas mesmas feições de qualquer outra religião, com hierarquias e autoridades divinas concedidas aos superiores, com os ditos de cima transformados em dogmas para os demais. Não estava escrito em nenhum lugar essa estrutura, considerávamo-nos defesos dela pela racionalidade de que era cheia nossa doutrina, mas ali estava, no cotidiano mais prosaico.

Por muito tempo achei, que não passava de um desvirtuamento das origens, de um modismo brasileiro, de um espiritismo tupiniquim. Contudo, dei por mim que não. A alma humana não é primordialmente racional. As experiências das redes sociais nos mostraram que somos gregários. Afeiçoamo-nos a clãs, irmandades, igrejas, clubes, grupos por primeiro, e assim sentimo-nos vivos. A racionalidade dessa adesão é o que menos importa. Vale mais a identificação que é em grande parte genética, histórica, tradicional, dinástica. O grande enigma que ainda ei de elaborar por estas páginas é como se dá a conversão do que era sanguíneo para mim para o que me é alheio, isto é, Roma em Cristianismo. 

Voltemos ao espiritismo brasileiro. Ele é assim não uma religião, mas várias. Camufla-se como racional, porém é cravado de superstições. Infla-se por não ter liturgia, nem hierarquias, mas as tem, só que desidratadas, transformadas em necessidades higiênicas - "importante fazer uma prece no início de toda reunião para nos concentrarmos melhor" - ou burocráticas - "é preciso ter quem coordene e sem a contribuição da sua associação, como poderemos fazer as obras?". 

E o ponto alto da falha espírita é este: não temos uma divindade que nos fundou. Os católicos tem a Cristo, o próprio Deus encarnado. Os muçulmanos têm o arcanjo Gabriel. Os budistas têm a Buda, o iluminado que superou em sabedoria toda a miríade de deuses menores hindus. E nós temos quem? Kardec, um homem ilustre, mas longe de ser um iluminado. Ou seria o Espírito de Verdade? Mas quem seria esse? Jesus falando do invisível? Sem o nascimento virginal, sem a carne, sem a cruz, o que seria esse Jesus? O Espírito de Verdade estaria mais para um fantasma, uma quimera, o autor invisível de um texto coerente. Na era dos modelos de linguagem massiva, percebemos que não há nada mais artificial para se ter como base de uma religião.


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