A Última Pá de Terra



Estou a poucos passos de ser católico. Faltam poucas páginas de catequese para, então, enviar os documentos necessários à paróquia. 

Uma simbologia forte estará em torno do meu batizado. Será na pequena cidade onde enterrei meus pais e meus avós maternos. É onde estão enterrados também as melhores lembranças da infância. Onde moram tantos fantasmas, renascerei.

Não sei o que papai diria disso. Por um tempo pensei que seria um problema, que ele tinha um orgulho tremendo de ter um filho tão espírita. Hoje penso que diria tudo estar bem onde meu coração estiver bem. Mas, sempre me afastei desse ecumenismo morno. Ou era o espiritismo o futuro das religiões, e portanto eu vinha perdoando toda a ignorância delas de ainda não o serem, ou é o catolicismo agora a única religião que conduzirá a Deus, e o que será das demais?

Aprendi a dizer não sei. 

Parte da minha conversão exige que revele, não por imposição da igreja, mas para conhecer a minha verdade, que eu tinha repúdio ao catolicismo. Toda essa pompa, esse ouro, essa suntuosidade ao redor do madeiro em que morreu o Nazareno, para que? Todos esses ritos, essas liturgias, essas festas, esses coros monótonos em torno de amuletos e estátuas, isto é, de madeira e de pedra. E, conclusão óbvia, porém inconfessa, é que toda a gente que estava ali era estúpida por ignorar a minha verdade espírita e não aderir logo ao futuro. 

Era inconfessa como lhes disse. Então, quem me olhasse falando de catolicismo veria um rapaz gentil com um leve sorriso de deboche no canto, e só. 

Porque o espiritismo era o único a conciliar todas as crenças, ainda que destruindo todos os altares e reduzindo-os ao pó das vidas sucessivas e da comunicabilidade dos espíritos. Sim, porque, ao final, é só isso que tínhamos. Tudo se resume à reencarnação e mediunidade. Peguemos todo o credo dos apóstolos. 

1. Deus, todo poderoso, criador do céu e da terra...
... fez também os universos nos quais os espíritos migram até à perfeição. (reencarnação).
2. Jesus Cristo, nosso senhor...
... é um espírito que passou pela esteira das reencarnações até atingir o mais alto grau de perfeição (reencarnação). Deixemos de lado essa história de único filho.
3. Concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu à mansão dos mortos, ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus, onde está sentado à direita de Deus pai, todo poderoso...
... Por favor! Não há Espírito Santo, nem muito menos Maria era virgem, nem Deus tem forma para ter trono, e, se está em todos os lugares, o que significaria direita ou esquerda? (aqui é só destruição mesmo)
4. ... de onde há de vir para julgar vivos e mortos...
... haverá de fato um julgamento que separará os habitantes que merecerão continuar neste planeta e aqueles que deverão ser expulsos para um outro (reencarnação)
5. Creio no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica...
... posso até crer em santos espíritos, mas na Igreja Católica, jamais.
6. Na comunhão dos santos...
... todos os que chegaram no topo da evolução terrestre (pelas reencarnações sucessivas)
7. Na remissão dos pecados... 
... pelas reencarnações sucessivas.
8. Na ressurreição da carne... 
... que é uma espécie de desencarnação a que todos estamos submetidos, para posterior reencarnação.
9. E na vida eterna...
... dada pela lei da imortalidade da alma que entrega o espírito ao ciclo das reencarnações.

Todo esse reducionismo foi revelado pelos espíritos à Kardec. "Não é tão simples assim", dirão os estudiosos espíritas. Assim, como não pode ser tão simples assim reduzir todas essas fórmulas acalentadas desde pelo menos o século II depois de Cristo até agora, em meros desnovelamentos reencarnatórios. Esse credo, originalmente tomado, dá substrato a um épico de consequências cósmicas, a quebras dramáticas na história da humanidade, à sublimação nunca antes vista da figura da mulher, e a ações inimagináveis de um Pai onipotente que se submete ao martírio para salvar seus filhos. Tudo isso é atropelado por um tratorzinho com o nome reencarnação grafado na pá carregadeira, tendo espiritismo na sua lateral, como indústria fabricante do veículo.

Enxerguei isso a partir de minhas incursões antropológicas pelas leituras de culturas diferentes, abrindo-me para que todas fossem verdade, porque não? De Zeus a Tupã, de Olodumaré a Buda. E passei a ter um carinho especial para com os ritos cultivados ao redor desses deuses, às vezes pelo gosto do conhecimento, e depois pela sincera suspeita de que, de algum modo, pudesse haver uma verdade ali. 

Se havia verdade nas incursões de Zeus na carne, porque não haveria na concepção do Espírito Santo? E se nos mais diversos templos havia virgens devotas, porque não Maria de um modo ainda mais especial? E se isso e aquilo, porque não todo o resto do credo apostólico? E porque não eu ser um nada, convertido a algo somente a partir da filiação que herdarei nas águas de Jesus, o único filho?

Estou prestes a ser batizado. Por tudo que vivi sendo espírita, ainda preciso passar por uma desconstrução feroz da minha forma de ver o mundo, antes portadora de poucas chaves universais para abrir o segredo de tudo. Quase toda parte do credo me dói, porque lembro das lógicas de papai debatendo contra o que ele achava ser falácias de padres e pastores intolerantes. Sendo que papai morreu, e eu continuo vivo em um mundo em ebulição. Apesar de toda a devoção que tenho por ele, estou prestes a colocar uma última pá em seu túmulo, que deixa transparecer os fios de titânio surgidos da carne consumida. 


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