Minha esposa


Eu lembro que tentei doutriná-la, converter é a palavra mais certa. Não querendo viver o primeiro namoro em que tive a amada rejeitando minha doutrina, dei para apostar na minha última namorada com a vontade de moldá-la à minha felicidade.

A fragilidade dela me passava uma abertura para tentar domesticar o seu medo, sua vergonha, sua tristeza, e fazer florir ainda mais o seu sorriso, deixá-la plena, livre, mulher. Queria fecundá-la muito mais do que com meus genes, mas com minha filosofia, a espírita. 

Não consegui. O tempo foi passando e ela resistia. Não com silogismos. Apenas resistia. Embora cada vez mais distante da missa e sempre afeita a um catolicismo mais aberto, ela resistia. Havia um núcleo de crença inabalável que eu pelejava por entrar e ressignificar, mas via que permanecia. 

- Jesus e Deus são uma só e a mesma pessoa. 

Jesus fazer milagres improváveis e ter ressurgido dos mortos com o corpo de carne, ou ainda a virgindade de Maria, tudo era consequência desse dogma primeiro. 

E, embora eu tivesse um respeito magnânimo por Jesus, e minhas palestras ficassem mais belas e compreensíveis apenas quando recorria à interpretação de suas paláboras, o nazareno nunca foi amado por mim como ele o era por ela, sem palavras ou porquês, apenas porque era.

- Por que você é tão amado por ela? - perguntaria a ele.

- Eu sou. - responderia.

- Ele é. - diria ela.

Quem, com o tempo, foi cedendo fui eu. Sem ritos em minha religião, entreguei nossos filhos aos ritos da dela. Sem dogmas, deixei que eles fossem ensinados nos dela. No cotidiano, trazia fantasias reencarnacionistas, fantasmagorias, contos sobre elementais e noções de akasha, fluido cósmico. Porém, permiti que o cerne de suas convicções fosse:

- Jesus é Deus. Eu não sei como, mas sua mãe deve ter razão.

No início, previ e desejava que a adolescência traria a revolta e, pelas vias dela, eles se voltariam para minha doutrina. Contudo, vem a inteligência artificial que nos assombra hoje e ameaça o ponto crucial do espiritismo, a certeza que nossos parentes estão vivos, não pela promessa do Cristo, mas pela comunicação deles, pela manifestação deles através das mãos de intermediários. Eu, que mergulho no que me aflige como quem quer escreve um tratado, percebi que o exercício da construção de texto das IAs em pouco tempo tornaria indiscernível o ente querido falecido de textos construídos por estatísticas. Estamos construindo um mundo virtual.

Percebi, então, a grandeza da mensagem da igreja, de não deixar cair o dogma da palpabilidade da carne de Cristo, da palatabilidade dela, da eucaristia. Perpetuando há milênios um gesto originário que ele mesmo mandou que o fizesse em sua memória. Criticavam-lhes, os católicos, de sensuais, materialistas, sendo que é isso mesmo que estou precisando, a carne de um deus, a carne de Deus fazendo morada em mim. 

Ele me venceu através dela. A pessoa com quem mais dividi a carne transmitiu o verbo da carne de Deus para mim. Ainda fere meu orgulho falar essas coisas.

O que será de mim sem meu credo primeiro? Assumir uma igreja contra quem sempre tive um sorriso de desdém adolescente, e a quem, já adulto, aprendi a respeitar por caridade apenas por ser meu diferente.

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